sexta-feira, 10 de abril de 2009

Veneno

A história deste poema me traz bastante contetamento, pois foi através dele que conquistei, em 2002, o 1º Lugar no Concurso Municipal de Poesias, na categoria "Ser Humano, Ser Universal". O concurso era promovido pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de Duque de Caxias que, nos dias de hoje, sabe lá Deus como anda. Não, não estou sendo ambíguo. A duplicidade que a sentença anterior sugere é proposital: jogo para Deus tomar ciência tanto a Secretaria de Cultura da cidade quanto a própria Prefeitura, como órgão superior daquele município. Mas isto não vem ao caso agora, nesta postagem, senão em uma outra, que renderia linhas e linhas, não obstante as que por ora gasto neste poemenso! Por falar nele, ei-lo: "Veneno", uma das coisas mais significantes que eu já escrevi, daquelas que a gente pode se orgulhar quando chegar às muitas idades que o tempo nos há de dar, oxalá. Mas, vocês irão perceber, o orgulho vem da obra, da mesma forma que a vergonha dela vem. Um texto que faz jus ao título do blog, longo mas ao mesmo tempo breve, um poema que denuncia e metaforiza o veneno da nossa sociedade, a penúria, a fome:

Veneno


Moço, aí tem comida?
Que boa a sua vida!
Que bom! Aqui não tem
Nem queijo, nem pão
Nem um pouco de vida...
...e há tempos que não como!
Tampouco sei como morrer
Tem veneno, moço? Quero comer
Algo que faça mal,
Um mofado de bolo,
Um pão integral...
Algo radical, letal,
Algo fatal, mortal,
Algum labirinto
Que me dê alucinação
Que faça alvoroço, moço
Algo que me leve consigo
A um jazigo, a um caixão,
Que não me deixe faminto,
Nem sedento, nem ao vento,
Algo que me dê abrigo.



Dê-me ao menos um almoço
Que costuma estragar.
Dê-me o estragado!
Faça um esforço
Uma salada, um ovo
Podre, um jantar...
No Ano Novo, moço,
O que puder me dar:


Um morticida qualquer
O que quiser, um formicida,
Um inseticida, uma mulher...
Uma vaca completamente louca!
Um garfo, uma colher
Uma faca, um talher...
Uma ponta bem afiada na boca!
O que vier é um presente;
Um dente pra mastigar comida,
Um remédio que me deixe doente
Um tédio, uma mordida,
Má-sorte, figa, chocolate...
Algo pra morte
Algo que mate
Que tire a vida!




Dê-me um veneno, um doce,
Um pirulito, um meteorito,
Uma paulada na cabeça...
Algo que resolve;
Um chiclé, uma bala
De revólver, uma granada,
Um tiro de escopeta!
Uma bola, uma pistola...
Um nada, o que quiser.


Pinga uma pinga, uma gota de veneno
Algo na minha boca
Um leite do peito,
Um pouco de leito...
Nada a menos
Que litros de ácido úrico,
Ácido sulfúrico, benzeno...
Nada demais.
Chazinhos naturais,
Plantas mortais...
Ervas abortivas
Que me abortem da rua.
Uma pata-de-vaca,
Uma comigo-ninguém-pode,
Uma cabeça-de-bode,
Um pé-de-cabra que abra
Os braços e dê um abraço
No âmago de meu estômago,
Algum toque que me traga.
Uma arruda na boca,
Uma ajuda, uma praga...


Prepare o meu prato
Com veneno de rato,
E uma taça de vinho
Com muito veneno
Ferro, chumbo,
Chumbinho!
Algo que me seja leve,
Amendoim, racumim, eutanásia
Em festival, rico e farto
(Cardápio fatal!):
Um infarto, um surto
De vírus contagioso!
Algo que me seja bem bom,
Bem nocivo, bem gostoso!
Um drinque, um aperitivo,
Um bombom venenoso...
Uma carne contaminada,
Cisticercose solitária...
Um ossinho bem curto,
Uma bebida estragada,
Comida com a validade
Ultrapassada! Vencida!


Sirva-me, moço, por favor,
Em taça de cristal rachado
Uma água poluída,
Algo que mate a sede,
Algo que mate a vida,
Um sorvete envenenado,
Um banquete grato,
Um bolor, um mofo,
Uma lingüiça, um chuchu,
Envenenados, crus,
Coisas mal-feitas,
Mal distribuídas,
Carne putrefeita,
Carniças, urubus,
Um germe, um verme,
Uma derme apodrecida,
Tudo me serve, tudo se come,
Tudo é comida!



Tudo é vida, tudo experiência,
Deixe-me o experimento
Do sabor de um elemento
Químico, repulsivo.
Não, não me deixe, moço,
Isento de algo bem nutritivo,
O capricho de um alimento,
Um lixo radioativo!
Um césio emitente,
Um milho explosivo...
Quem sabe um urânio
Ou lantânio ou mercúrio,
Líquido, consistente,
Claro, escuro.
Um experimento consciente!
Algo incandescente!
Algo inseguro!


Dê-me algo pra comer,
Veneno pra morrer,
Um arroz, um facão
Que corte, que rasgue, que fure
Um baço, um estômago, um coração...
Um prato de vento,
De poeira, de sujeira,
De fogo, de enxofre,
Um prato de comer
Qualquerzinha besteira,
Qualquer coisinha.



Se puder ainda, moço,
Dê-me essa comida, esse almoço,
Teu resto, tua sesta,
Esse pescoço que sobra
Dessa galinha...
Essa água morna que fica
Dessa sopinha...
O osso roído da costelinha,
A brasa dessa picanha,
Essa gordurinha...!


Ou o veneno da cobra,
Do escorpião que pica,
Suco de peçonha,
Garras de aranha, carne de sapo,
Um trapo, uma formiga,
Um retrato da vergonha,
Da miséria e da desgraça,
Uma sobra, a espinha
De uma piranha,
De uma sardinha...
O espinho de uma rosa,
A água de um parto,
Uma nicotina, um cigarro,
Uma fumaça, uma tragada
Num cano de descarga
Monóxido de carbono.
Dê-me algo que me faça dormir,
Algo tóxico, mortífero,
Uma espécie de elixir,
Algum tipo de sonífero,
Um fel, um sono
Terno, fraterno,
Um inferno, um céu,
Um sonho eterno...



Moço, dê-me o que comer.
Dê-me veneno, eu quero morrer!!
Não quero a goiaba do senhor,
Quero o bicho!
Não quero o teu escargot...
Quero o lixo.
O lixo da mesa
Do chão, do corpo,
Farelo de pão, mijo e cocô.
Quero atônito o teu vômito,
Tua migalha e o teu suor
Quero é a tralha e a urina
Que desprezas, lançando-a menina
Pro lado de fora.
Quero minha sina na sorte
De um alimento, morte, carnificina.


Dê-me algo pra ficar forte,
Algo que sustente, algo atômico,
Uma bomba de Hiroshima!
Biotônico, vitamina,
Cálcio, ferro, aço,
Cloreto de sódio,
Cloreto de potássio
No sangue, na veia,
Banana, aveia, ódio,
Teias de tarântola,
Ostras, moscas,
Um fortificante!
Um fogo, uma tocha,
Uma chama...
Anabolisante, moda,
Algo que come, que brocha
Na hora da transa,
Na hora da folia,
Da masmorra
Da vergonha, da fome...
Algo que brote
Pra ficar forte!
Maconha...coca...morte!




Dê-me, moço, algum esboço
Algo que me sacie da rua
Uma esmola tua
Que me satisfaça,
Alguma coisa, algum troço,
Algo que não posso,
Que me tire a vida;
Um morticida,
Uma saída, algo nocivo,
Um castigo, um incentivo, uma força...
Um lápis, um caderno, uma forca...
Um éter, um lenço
Algo em que não penso
Algo mortal, ameno,
Algo que se ingere,
Algo que se consome
Algo que se bebe,
Algo que se come...
Pois a continuar morrendo
E morto continuar vivendo
Prefiro comer veneno
A ter que morrer de fome!

Léo Rosetti

Um comentário:

Para quem sabe urinar, um pingo é letra!
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