quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Um outro Rio mostra a voz nas urnas

Na reta final das Eleições 2010, tentei reler no SAI NA URINA o texto que publiquei sobre as Eleições 2008. Incrivelmente não achei aqui. Lembrei que eu o publiquei primeiramente no site da Comunidade Betel, mas também lá não achei. Por fim localizei-o no blog Igreja Inclusiva. Trata-se de um texto de minha autoria sobre as eleições municipais de dois anos atrás. Mas, desde então, percebia-se meu temor em relação a um candidato específico que, de eleição em eleição, vem mostrando seus cachos de ovelha que disfarçam, por baixo dela, a pele e o corpo de lobo voraz. Vale a pena reler!

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Um outro Rio mostra a voz nas urnas

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Se tem um cronista para o qual eu tiraria o chapéu, não poderia citar outro nome senão Lima Barreto. Há quem o tome por cronista e interprete suas crônicas escritas no início do século XX como um amálgama entre História e Literatura, misturando, nos meandros do texto, situações de cunho ora jornalístico, ora ficcional. Eu penso um pouco diferente. Acho mesmo que a grande paixão de Lima Barreto era a História, e não pensem que digo isto com alguma parcialidade, porque para tanto não há qualquer motivo.

Um dos livros de Lima Barreto – obra póstuma publicada em 1923 – chamava-se “Os Bruzundangas”, uma coletânea de crônicas onde, dizem alguns, o escritor relataria, lançando mão de um belíssimo recurso literário, um país fictício, o que alguns intelectuais mais dados às Letras dizem hoje ser metáfora do nosso encantado e maravilhoso Brasil. Mas eis um segredo! O país dos bruzundangas existia, sim! Como existe ainda hoje, escondidinho em um canto qualquer do nosso planeta. Não é literatura, não. É relato histórico de cabo a rabo.

Infelizmente Lima Barreto não sobreviveu para presenciar a trajetória da Bruzundanga sobre a qual escrevera. Este era o nome da nação dos bruzundangas. O país ficou famoso porque, ao longo de sua história, seus cidadãos foram desatrelados da cultura do voto. É bem verdade que podemos atribuir isto ao fato de a Bruzundanga ter passado por duas grandes ditaduras. A primeira, sob a liderança do chamado “Pai dos Miseráveis”, o famoso Manda-Chuva G. Túlio Wargas. Dada uma trégua democrática, a Bruzundanga foi tomada por um surto ditatorial militar, cujos expoentes formavam um grupinho muito pouco coeso de milicos torturadores. De forma tal que a Bruzundanga formou gerações de quase-cidadãos, que desacreditaram em sua capacidade de influenciar os caminhos pelos quais o país caminharia. A confiança na classe dos Manda-Chuvas foi sendo perdida, na medida em que este grupo acostumou toda a gente bruzundanga a servir de muleta para a corja manca da política charlatã. Uma elite fétida, podre e capenga, que embutiu na classe média a esperança de estar um dia ostentando muletas de cedro, muito embora só possa, atualmente, cravar sobre os menos favorecidos um bastão de compensado barato, supervalorizado com altas taxas de juros nas Casas Bahia, e comprado em suaves e intermináveis prestações em crediário. Assim é a classe média bruzundanga: emergentes da pobreza e candidatos à elite.

Pois bem, a Bruzundanga atual é um país democrático, politicamente organizado, e ostenta o título de República Federativa da Bruzundanga. De quatro em quatro anos, os bruzundangas elegem seu presidente. Da mesma forma, mas com um hiato de dois anos, acontecem as eleições municipais, e qual não foi minha surpresa ao ver que as eleições bruzundangas aconteceram no início de outubro, assim como no Brasil! Oxalá não termos no nosso país a corrupção que encontramos lá, na sociedade dos bruzundangas. Uma corrupção de caráter, que vai desde o cidadão que fura a fila do banco até o presidente que fura... fura tanta coisa! O pior mesmo é quando tem um furo de reportagem, e aí a quadrilha política aparece, cínica como um bando de lobos que, disfarçados de cordeiros, fazem um banquete com alguns milhões de porquinhos. Aqui no Brasil não tem esse conto de fadas, não. A realidade nos conforta. Mas lá... tem até manda-chuvas pagando mensalões para os seus afilhados-colaboradores.

Um das cidades mais lindas da Bruzundanga – o Rio Dijaneiro – já foi capital do país, e vivenciou há algumas semanas as suas eleições municipais. E um grave perigo se instaurou no cenário dijaneirense. A ameaça surgiu de um grupo soberbo e enganador, detentor de status e prestígio, principalmente – no caso da Bruzundanga – por representar uma vertente religiosa deturpada e decaída, o IURD (Instituto Universal dos Reis-Deuses), que muito faz lembrar os personagens de Lima Barreto. Em suas crônicas, eles vivem na República dos Doutores – apelido dado ao país – cuja estrutura de poder bolina nossa dignidade e desvenda uma cultura política marcada pelo clientelismo e pelo favor. Nela, ser “doutor” significava não um título acadêmico, mas o passaporte para a promoção social, política e financeira. No IURD a diretriz caminha de maneira muito similar, com seus reis-deuses pregando aos quatro ventos uma teologia da prosperidade, o toma-lá-dá-cá divinal. Os fiéis-seguidores outorgam pra si o título de eleitos, e para os outros, o rótulo dos condenados.

Mas até então a concupiscência limitava-se ao âmbito religioso, resguardada pela liberdade de fé propagada na Constituição Bruzundanga. Porém, nesse ínterim, a classe média do IURD – os aspirantes a “doutores” – elegeu seu representante, para que este fizesse valer seus interesses mesquinhos e hipócritas no âmbito político da cidade do Rio Dijaneiro. Foi-lhe dada uma boca que proferia arrogâncias e blasfêmias e autoridade para agir durante os meses de campanha política, onde toda a nação bruzundanga o identificava por um signo numérico. Aqui há sabedoria. Aquele que tiver entendimento calcule o número deste político, pois é número de um bispo. Ora, este número é dez.

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O homem não podia ser originário da Bruzundanga, devia ser estrangeiro. Estrangeiro, sim. Não posso afirmar de surgiu o dito bispo – embora o tenha visto emergir do mar com dez chifres, dez diademas e uma faixa onde se lia: Cree Wella é dez – muito menos quem pariu o torpe verme. Mas imagino que seja estrangeiro, não apenas por seu nome e sobrenome, mas porque nunca se havia visto na Bruzundanga tamanha alegoria político-religiosa concentrada nas mãos de um único homem.

Seja de onde for, o fato é que a besta apareceu na política nacional, vestido de cordeiro, fazendo programas de tevê, anunciando aos povos a Terra Prometida, a Fazenda Canaã. E de cordeiro, passou a pastor, e de pastor virou lobo, e de lobo ascendeu ao status de rei-deus, e de rei-deus ganhou passaporte fácil para o Senado. Não satisfeito, o bispo quis alçar vôos ainda mais altos, candidatando-se à prefeitura da cidade para representar os interesses de seus súditos-religiosos. A conspiração era audaz, a estratégia era ousada, e o projeto, ambicioso: transformar o Rio Dijaneiro na cidade de Cree Wella. A idéia diretriz incluía mudar o nome da cidade Bruzundanga, que passaria a se chamar “Creewellândia”, e nela reinariam todas as suas idéias, que foram pensadas há muito em secretas reuniões bispais com os demais reis-deuses. E nos concílios, feitos às custas dos impostos dizimais dos súditos-fiéis, os reis-deuses receberam o aval da candidatura do bispo, respaldados pela promessa da vitória, oriunda de algum ser que eles disseram ser Deus. Certos da vitória nas urnas, deram início à campanha política.

Eu posso imaginar que nem todos os candidatos à prefeitura do Rio Dijaneiro eram exemplos de competência, ética e respeito à diversidade, mas nunca se vira um discurso tão segregador quanto o do candidato Cree Wella. Eu não sei o que o bispo pensou quando imaginou a criação da Creewellândia. Sua cidade virtual não condizia com a realidade da Bruzundanga: um país formado por bruzungangas, mas também por bruzundecas, bruzundocas, bruzundivas, bruzundíssimas, bruzundelas... O Rio Dijaneiro também sempre foi cheio dessa gente diferente, plural, mista, e tão cidadã quanto os bruzundangas – muito embora marcada por lutas sangrentas e muitas, muitas injustiças sociais – motivo pelo qual a pretensão de uma Creewellândia livre de todas esses agentes era, além da institucionalização do preconceito, a utopia de concretizar as idéias de uma vertente religiosa que caminha na contramão dos avanços sociais! O cúmulo da esquizofrenia: como negar a existência de um povo que não nega a sua identidade? Como lidar com um mundo em transformação utilizando um discurso tão arcaico, preconceituoso e mentiroso?

Das duas uma: se o Criador prometeu a vitória ao bispo, ou Deus enganou o profeta candidato ou o candidato era falso profeta, porque na disputa eleitoral Cree Wella foi infeliz. Aliás, sempre foi e deve sê-lo até hoje. Porque nenhuma candidatura, ou postura política, ou convicção religiosa, ou consciência crítica, pode ficar às margens das mudanças do mundo. Creewellândia seria uma cidade irreal, pois segregaria as diferenças, a pluralidade, as diversidades, a bruzundangalidade que sempre fez deste país a segunda nação mais hospitaleira do mundo (só perdendo para o Brasil, logicamente); seria uma cidade pobre, porque as idéias provenientes da corja putrefeita do Instituto Universal dos Reis-Deuses não têm consistência, senão por utilizarem com uma certa coerência um discurso do “quem-dá-mais”, fundamentado numa base lógica – que existe na matemática financeira – mas não no Evangelho pregado pelo Cristo, o Deus encarnado, o humilde carpinteiro, dois mil anos atrás; seria, ainda, uma cidade triste, porque retrocederia décadas, quando ainda as minorias da Bruzundanga sofriam impunemente as dores da violência e as amarguras do silêncio, e não tinham a alegria dos direitos conquistados através de suas lutas históricas por justiça social. E foi na esperança de que a cidade do Rio Dijaneiro não fosse transformada numa cidade irreal, pobre e triste, que a população dijaneirense – cansada do vício do clientelismo bruzundanga e convicta de que preceitos religiosos não devem jamais alçar vôo a ponto de impedir direitos civis – mostrou sua voz nas urnas nas últimas eleições municipais, impedindo o bispo Cree Wella de proclamar suas inverdades falaciosas no segundo turno das eleições, que acontecerá nas próximas semanas, restando-lhe apenas a euforia de ser, durante os dias de campanha, alvo da histeria coletiva de seus súditos-fiéis. E à população do Rio Dijaneiro, resta a esperança de que o prefeito eleito no segundo turno represente com ética, competência e justiça, os interesses de toda a comunidade dijaneirense, que inclui bruzundangas, bruzundecas, bruzundocas, bruzundelas, bruzundíssimas...

Eu queria mesmo é que Lima Barreto escrevesse crônicas sobre as eleições no Brasil de hoje, mas aqui, crônica mesmo ficou minha dor de ouvido, de tanto ouvir fogos, “jingles”, refrões animados e numerosos aglomerados humanos gritando uma melodia contagiante entoada para algum candidato às vésperas das eleições. Fora isso, sem muita polêmica. Houve um disse-me-disse aqui, um candidato impugnado acolá, outra que foi eleita na cadeia, mas nada que ultrapassasse a ordem natural das coisas no Brasil, pois pra tudo aqui dá-se um jeitinho. Na Cidade Maravilhosa, o pleito correu, como se deve imaginar, às mil maravilhas. Houve quem dissesse que algum candidato desqualificado à prefeitura ousasse desafiar a população com algum discurso vazio, preconceituoso e fundamentalista. Porém, em se tratando dessa gente, é melhor nem citarmos o nome. Já diziam os sábios: a palavra tem poder. Se o povo lhes dá corda, mais aumenta a sua fama.
Perdoem-me o equívoco, mais apropriado é dizer: a sua infâmia.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Toda mulher é meio Eliza Samudio (por Jean Wyllys)


O desaparecimento de Eliza Samudio, a moça que teve um filho com o goleiro e capitão do Flamengo, Bruno, e que, agora, é dada como morta pela polícia que investiga o caso; este desaparecimento e sua cobertura por parte da mídia chamaram a minha atenção não por ser o tal do Bruno aquele apontado como o principal responsável pelo sumiço da moça (meu interesse por futebol não chega ao ponto de eu saber quem é o capitão do Flamengo), mas, sim, pelo fato de a internet, desde o momento em que a polícia levantou a hipótese de Eliza ter sido assassinada pelo goleiro, vir sendo invadida por comentários machistas que buscam desqualificar a vítima para, assim, “justificar” o crime que lhe tirou a vida. Como homem homossexual solidário às mulheres, eu me interessei pela repercussão do caso Eliza Samudio por perceber, nos comentários que lhe acusam de “Maria Chuteira”, “puta” e “atriz pornô”, entre outros mimos, não só aquela violência ordinária, construída ao longo dos anos em que uma menina se transforma em mulher e aprende a se tornar vítima, ou aquela violência mortal que, por exemplo, pôs fim à vida de Eliza, mas, principalmente, por perceber aquela violência sistemática dirigida contra todas as mulheres e que se expressa primeiramente na linguagem. É claro que a grande maioria destes xingamentos que objetivam desqualificar a vítima para “justificar” ou “explicar” a barbárie que lhe abatera partiu de homens, alguns deles fanáticos por futebol ou pelo Flamengo, mas muitos vieram também de outras mulheres, o que mostra que a dominação masculina é eficaz também por fazer, de muitas mulheres, machistas de plantão e inimigas de si mesmas. Depois de demorada e criteriosa investigação acerca do desaparecimento de Eliza, as polícias de Minas Gerais e do Rio concluíram que ela fora assassinada cruel e covardemente e divulgaram detalhes sórdidos e estarrecedores: a moça frágil teria apanhado ao ponto de pedir clemência aos seus algozes e, depois, estrangulada sob o olhar impassível de Bruno, goleiro do Flamengo, que, segundo a polícia, não só é o mentor deste crime hediondo como, após a conclusão do mesmo, sentou-se para beber cerveja e para falar de futebol. Estes detalhes me levaram às lágrimas e me tiraram o sono (Queria eu ser um super-homem para mudar o curso da história e salvar Eliza das mãos dos criminosos!), mas, a outros homens e mulheres, a divulgação dos detalhes sórdidos só serviu de estímulo para que continuassem a difamar a vítima na esperança de proteger não só um ídolo do futebol (e pensar que, na Escola do Flamengo, os futuros atletas idolatravam este tal de Bruno me dá arrepios!), mas, sobretudo, proteger o direito do macho sobre o corpo da mulher; sobre sua vida e sua morte. Indícios desta cumplicidade apareceram no fato divulgado pela imprensa de que os policiais e carcereiros da delegacia onde Bruno fora presa passaram a noite conversando amigavelmente com o acusado sobre futebol e viagens. Onde já se viu uma coisas destas? Será que esses policiais também concordam que “Maria Chuteira” que engravida de jogador rico e, depois, cobra-lhe uma pensão merece apanhar até morrer e, por fim, ser desossada e atirada aos cães? Será que eles disseram isto para o goleiro? Daí para Bruno ser inocentado é um pulo! O assassinato de Eliza Samudio – principalmente por ser, o acusado de ter planejado este crime, rico e famoso porque capitão de um time de futebol popular – traz à luz, de alguma maneira, as violências semelhantes a que são submetidas outras mulheres, e que, embora sabidas, não se tornam públicas. Mulheres que, como ela, eram cheias das esperanças e ilusões que povoam a alma, qualquer alma. Toda mulher é meio Eliza Samudio! Como homem solidário às mulheres (até porque tenho uma mãe, duas irmãs e muitas amigas que eu amo), eu espero pelo dia em que a notícia do assassinato brutal de uma mulher não sirva para que machistas e misóginos esmiúcem os detalhes de sua vida íntima com o intuito de desqualificá-la e, assim, “justificar” sua morte, mas, sim, que sirva de libelo contra a covardia da besta humana que praticou e/ou idealizou o crime.