segunda-feira, 17 de maio de 2010

Deus e o diabo na terra dos candangos

Deus e o diabo na terra dos candangos:
O debate sobre o Estatuto das Famílias na CCJ da Câmara Federal
Por: Ricardo Pinheiro




Um debate bastante polarizado dominou o clima da audiência pública sobre o Estatuto das Famílias na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) na quarta-feira passada, 12/05/2010, em Brasília, reconhecida pela cultura local como a terra dos Candangos. O Estatuto engloba diversos projetos de lei (PL 674/07 e 2285/07, entre outros) e, em alguns deles, existe a regulamentação da união entre pessoas do mesmo sexo e da adoção feita por esses casais.


Críticos e defensores da união civil de homossexuais colocaram seus argumentos diante do plenário lotado, onde evangélicos contrários à união de pessoas do mesmo sexo estavam em maioria.


Para tentar chegar a um acordo, o presidente da CCJ e relator do Estatuto das Famílias, deputado Eliseu Padilha (PMDB-RS), disse que diante de tantas diferenças e dúvidas, vai tentar encontrar um meio termo. Hã? “Meio termo”? Não me peçam pra imaginar o que poderá sair desse estatuto franksteinizado...


Para o presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, Toni Reis, não se trata de casamento, mas sim de garantir direitos civis. "Envolve essa questão da herança, de planos de saúde, de adoção. Nós queremos nem menos nem mais, queremos direitos iguais. Nós não queremos é o casamento, nesse momento não é a nossa pretensão. O que nós queremos são os direitos civis".


Toni Reis citou declarações das organizações das Nações Unidas (ONU) e dos Estados Americanos (OEA) para defender o direito ao reconhecimento da união civil e da adoção entre pessoas do mesmo sexo. Ele destacou que o Governo Lula também apoia a reivindicação e mencionou o programa Brasil sem Homofobia, coordenado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. "O Brasil é um Estado laico e queremos o que a Constituição preconiza, direitos civis", argumentou.


O pastor da Assembleia de Deus, Silas Malafaia questionou se outros comportamentos poderiam, futuramente, virar lei. "Então vamos liberar relações com cachorro, vamos liberar com cadáveres, isso também não é um comportamento?" O pastor foi muito aplaudido durante sua exposição. Malafaia afirmou que conceder os diretos civis é a porta para depois aprovarem o casamento. Ele defendeu que a família é o homem, a mulher e a prole, sendo que a própria Constituição defende esse desenho familiar.


Na mesma linha crítica, o pastor da Igreja Assembleia de Deus, Abner Ferreira afirmou que o Estatuto das Famílias seria, na verdade, o Estatuto da Desconstrução da Família. Segundo ele, ao admitir a união de pessoas do mesmo sexo, a proposta pretende destruir o padrão da família natural, em vez de protegê-la. Ele disse que todas as outras formas de família são incompletas e que toda manobra contrária à família natural deve ser rejeitada.


A vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, Maria Berenice Dias, afirmou que o fato de a Constituição proteger a união entre homem e mulher não significa que uniões homoafetivas também não possam ter direitos na esfera civil.


Ela avaliou que o debate foi para a esfera ideológica. "Estou sentindo nesse espaço um clima de muito medo, de muito revanchismo, pouco técnico, pouco científico, pouco preparado”, observou. “As pessoas estão se deixando dominar por posições religiosas muito ferrenhas, e confesso que não sei porque têm medo que simplesmente se assegure direitos aos homossexuais, se assegure a crianças terem um lar", acrescentou.


Maria Berenice Dias citou decisão recente do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu a adoção feita por duas mulheres, e afirmou que a união homoafetiva não ameaça a família. "Argentina, Uruguai, México e Canadá são alguns dos países que reconhecem essas uniões. Quem conhece esses lugares sabe que, por lá, a família vai muito bem, obrigada", disse.


No sítio da Câmara Federal [Agência Câmara de Notícias] do dia 12 de maio de 2010 é possível ver como o assunto mexe com os ânimos da fé de muitos – isso mesmo, a coisa está sendo reduzida à esfera religiosa! -, pois os comentários postados pelos internautas reproduzem o quantitativo de opiniões sob a mesma vertente ideológica. Os mais recentes comentários diziam, entre outras coisas:


“Uma coisa é respeitar o homossexual e não ter preconceitos quanto à sua opção sexual, assim como fazemos com os fumantes no tocante à opção de fumar, ninguém deve discriminá-los. Outra coisa é dizer que o fumo faz bem à saúde. Respeitar as opções não quer dizer que todas as opções sejam iguais. A opção de não fumar é melhor que a de fumar e a opção heterossexual é melhor que a homossexual”, assina Bruno.


“Definitivamente essa proposta de regulamentar a união de homossexuais é uma desonra aos preceitos da palavra de Deus para o homem e a mulher pois contraria e se opõe à santidade do nosso Deus”, assina Robervanda.


Um tal de Vanderlei foi mais tirânico, pois disse: “Vivemos na democracia. Em outras palavras, a maioria do povo governa ou decide como deve ser o governo. As minorias devem acatar o que a maioria determinar. Este é o princípio básico da democracia. Existem países que não existe a democracia. Será que lá é melhor?”.


Daí, pergunto: vivemos num país ideal no qual as pessoas são respeitadas por aquilo que são ou vivemos num país do “ainda-não” em que se é necessário lutar com as armas da cidadania plena para o respeito à dignidade da pessoa humana? Sim, pois é preciso avisar aos desavisados que homossexualidade não é “opção”, ou seja, não é escolha de ninguém em sã consciência psíquica sofrer diante de um padrão heterossexista, o ter que passar por esse achincalhe ou, para os que se curvam ao letrismo dos dogmas de natureza moral e tirânica, o padecer pela escravidão ao medo da danação eterna!


Os debates, obviamente, ainda não levaram a muitos passos dado o abismo entre as posições suscitadas. De qualquer forma, ficam aqui as implicações sobre o cenário dos fatos que se discute em nosso Parlamento. Vale a pena ficar calado e permitir que a omissão seja a chave para abrir as portas do retrocesso no campo das relações sociais e jurídicas existentes? Ou será que alguém duvida das manobras articuladas pelos segmentos fundamentalistas religiosos junto aos seus pares eleitos graças aos seus “e$forço$” eleitoreiros?


Na semana passada assistimos chocados ao acinte da malta dos perversos transfigurados em defensores da família [a família na obsolescência do entendimento deles!], comparando comportamentos qualificados como doenças ou distúrbios psíquicos pela OMS e as orientações sexuais. Sim, a disseminação do mal foi tão acintosa e certa de impunidade que ousou verborragiar a estupidez sem máscara alguma: gays e pedófilos, gays e necrófilos, gays e zoófilos foram assemelhados na cara dura diante de uma Comissão de Constituição e Justiça! A arrogância de um deles, aplaudida pela maioria ortodoxa religiosa ali presente, foi tanta que deu seu recado às lideranças partidárias, trazendo o debate para o contexto político das eleições presidenciais:



"Eu ouvi os homossexuais fazerem aqui pronunciamentos dizendo que o presidente os indicou para a ONU, que o presidente os apoia totalmente, então nós evangélicos, que representamos 25% da população, temos que pensar muito bem em quem vamos votar para presidente da República", avisou do alto de sua insolência o suposto porta-voz de ¼ do eleitorado nacional.


Que ninguém me entenda mal, tenho lá minhas convicções de ordem religiosa, as quais me inspiram à coexistência pacífica com todos os meus confrades [de todos os credos ou não], mas justamente porque amo os princípios pacificadores que são a essência da Igreja [aqui entendida não como termo com referência a qualquer institucionalização, mas apenas como categoria dos que são "chamados para fora" [1] do arbítrio dos deuses “Poder” e “Glória”], é que não engulo os ideais ensimesmados e absolutistas da "igreja evangélica". Sim, não engulo porque não reconheço nela – nem de longe, nem como sombra ou sereno – as marcas amorosas e portanto revolucionárias daquele que se diz o seu “inspirador”, conforme leio nos Evangelhos. Creio que somente quando o que está aí passar por uma desconstrução é que a Igreja terá chance de renascer no Brasil.


Entretanto, à vista daquilo a que todos assistimos na CCJ da Câmara, cabe-me a retórica da pergunta inspirada numa das letras do saudoso profeta cantador Renato Russo: "Que país é este?". Que país é este que nega direitos aos seus cidadãos, que faz do mais nobre Palácio das Leis neste solo um palco para “panem et circenses”, conforme nos inspiram os versos das Sátiras de Juvenal? Que país é este que transforma um debate sério num solilóquio moral-religioso desses “diabólós” [2] que fazem da fé uma bandeira política?


É pra se pensar, prezados cidadãos de bem e consortes amantes da democracia. Porque parado nem mesmo os modelos tradicionais de família em sociedade não ficam mais! Não me lembro neste instante, mas acho que o nome que se dá a isso é evolução natural das coisas. É, deve ser isso. Evolução natural. Na próxima audiência pública, não poderemos esquecer de levar isso para os “diabos-acusadores” quando emergirem lá no centro da terra dos Candangos.



Por ora, à lei e ao amor! Xô, Satanases [3]!


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(*) Texto adaptado da reportagem de Daniele Lessa no sítio da Câmara Federal, “Religiosos, juristas e ongs divergem sobre união civil gay”, de 12/05/2010.

[1] Do original grego "ekklésia", ou seja, os "chamados para fora".

[2] Do original grego, “acusador” ou “acusadores”, "opositor", "o que lança através ou por intermédio de". Diabo.

[3] Do original grego, Satan, ou seja, "adversário".