Texto de Arnaldo Jabor, publicado no Jornal "O Globo" em 10 de março de 2009.
Não sou fã deste cronista, mas esta crônica, em especial, merece destaque pela relevância e pertinência com a qual trata deste assunto que tanto nos deixou, a todos nós brasileiros, indignados e envergonhados.
No Brasil, o perigo está no 'bem'
Arnaldo Jabor
Lá do fundo da Idade Média o arcebispo de Olinda e Recife, Jose Ribeiro Sobrinho excomungou uma família e os médicos que fizeram um aborto em uma menina de 9 anos estuprada pelo padrasto e grávida de gêmeos. E o estranho ser togado de arcebispo ainda boquejou: "A Lei de Deus está acima da Lei dos Homens." Ou seja, a Santa Joana D'Arc foi queimada viva pela lei de Deus. A inquisição foi Lei de Deus, com milhares de horrendas torturas feitas sob as bênçãos de um Deus cruel? Espantosamente, o Vaticano, nos últimos dias, apoiou a decisão desse arcebispo
medieval de Olinda e Recife. Isso me lembra outro prelado idiota que uma vez excomungou um juiz que autorizou o aborto de um feto descerebrado e falou sobre o estupro: "Os filhos de mulheres estupradas devem nascer e serem educados pela Igreja, como órfãos infelicitados.
É espantoso o descompasso da Igreja Católica com os tempos atuais, justamente quando a História está de novo tão cruel, quando nós precisamos tanto de doçura, tolerância, que não é dada por este papa Bento XVI, de olhos frios e inquisitoriais. Ele foi vacilante com o bispo maluco que negou o Holocausto, como sendo um lero-lero de judeus, foi evasivo com os pedófilos religiosos da América, é contra os anticoncepcionais, contra as homossexuais, contra tudo. Daí o sucesso dos canalhas que inventaram os Bancos de Dízimos e os supermercados da Fé.
No mundo inteiro há uma reviravolta ética, um maniqueísmo ao avesso, um cinismo que nos habitua ao inaceitável. Bush, a besta quadrada do apocalipse, jogou o mundo no caos, em nome de Deus. Enquanto isso, em nosso mundinho brasileiro, na aliança do governo Lula com os mais nefastos canalhas, vemos uma inversão do mal em bem. O bem do Brasil (leia-se Lula) tem de passar pela aliança com os escroques para atingir um bem futuro de uma sociedade mais justa (leia-se 2010). Aliou-se ao PMDB - o mal da hora -, na sua maioria filhos do pior patrimonialismo nordestino, essa pasta feita de bigodes, cabelos pintados, focinhos vorazes, gargalhadas boçais e salivantes, inimigos antigos se beijando. Pode até ser que isso possa ser um bem a longo prazo alertando-nos para o óbvio: é preciso reformar a política no País.
Como se sentem, diante dessa aliança, os intelectuais que tanto apoiaram o PT, os bondosos de carteirinha, os cafetões da miséria, os santos oportunistas? Pela lógica "revolucionária"
Na época da Guerra Fria era mole. Contra todas as evidências (Hungria em 56, Praga em 68), o mal era o capitalismo e o bem, o socialismo. Agora, com a crise, está de volta este simplismo criminoso. Aquele picareta exibicionista do Slavoj Zizek já está inventando um stalinismo renovado, como vereda para a verdade luminosa. Tentamos inventar um mal separado do bem, mas está tudo misturado.
E essa bolha maldita que enriqueceu o mundo em dez anos e depois derrubou tudo? O bem financeiro virou o mal? Está difícil entender. Durante a ditadura, éramos o "bem". O mal eram os milicos. Acabou a dita e as "vítimas" (dela) pilharam o Estado.
O bem está virando um luxo e o mal é quase uma necessidade social. Sem participar um pouco do mal, não conseguimos viver. Como ser feliz olhando as crianças famintas? Temos de fechar os olhos. A felicidade é uma virtude excludente. Ser feliz é não ver. O mal está virando um mecanismo de defesa. Quem é o mal: o assaltante faminto ou o assaltado rico? Ou nenhum dos dois? Como praticar o bem? Apenas se horrorizando com o mal? O que é o bem hoje? É lamentar tristemente uma impotência, é um negror melancólico?
O Mal é sempre o outro. Ninguém diz, de fronte alta: "Eu sou o mal!" Ou: "Muito prazer, Demônio de Almeida."
Até o homem-bomba se acha o bem, pois sua missão é destruir a modernidade, e para a razão da tecnociência eles são o mal porque incompreensíveis. O mal no mundo hoje é o "incompreensí
Nem um "bem" tradicional se sustenta mais, vejam o arcebispo excomungante e o papa burocrático.
Todo pensamento aspira à totalidade. O bem é um desejo de harmonia, de Uno, de totalidade ou o bem é suportar heroicamente o incontrolável, a falta de esperança, a impotência ?democrática?
Hoje, com a queda das utopias, a razão tenta se adaptar ao absurdo pós-moderno. Mas, ao denunciar o Mal, vivemos dele. Eu mesmo ganho a vida denunciando o que acho "mal". Quem controla o mal? A verdade é que o mal está entranhado na matéria profunda do mundo. A verdade é que fomos construídos nessa dialética louca entre tragédia e harmonia, entre guerra e paz e isso é incontrolável.
Muitas vezes na história o "bem" foi devastador. Nietzsche escreveu em sua obsessão de libertar o homem: "Foram os espíritos fortes e os espíritos malignos, os mais fortes e os mais malignos, que obrigaram a natureza a fazer mais progressos." (in Gaia Ciência).
No Brasil, o mal não é épico, como falou Nietzsche, referindo-se, claro, à solidez estúpida da metafísica e da religião. No Brasil, o que nos assola é o pequeno mal, enquistado nos estamentos, nos aparelhos sutis do Estado, nos seculares dogmas jurídicos, nos crimes que são lei. O mal aqui está nos pequenos psicopatas que, quietinhos, nos roem a vida.
O mal do Brasil não está na infinita crueldade dos torturadores ou das elites sangrentas; está mais na sua cordialidade. Aqui, o perigo é o Bem.
Até citando o sr. é prolixo! hehe, brincadeirinha.
ResponderExcluirNão havia visto esse texto do Jabor e achei bastante interessante e abrangente. Até motivou um post no meu blog.
Beijos