terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Guerra civil é a pátria-que-pariu!


Quando das situações mais adversas e de difícil elucidação, é incrível como o ser humano se limita a circunscrever a explicação do mundo ao seu próprio umbigo, evitando refletir sobre realidades mais amplas e mais complexas.

Hoje saí do trabalho assim, com a face estarrecida diante de uma discussãozinha de fim de noite, depois de conversar com alguns de meus colegas de trabalho. Um deles advogou uma causa que me chocou bastante (uso aqui o verbo “advogar” porque o indivíduo se comporta como se já houvesse feito doutorado em Direito, mesmo que por ora seja um mero recém ingresso nesta faculdade). Eis o tema da discussão: o tráfico de drogas e as milícias. Como eu houvesse saído de lá com o estômago em náuseas, tenho que urinar aqui toda a carga eufórica que sufoquei, tendo tido a oportunidade de lançar à bexiga o que o estômago reteve. Mas o mijo sairá objetivo, com mira em apenas uma direção dessa grande privada que é a Internet. Eis o problema sobre o qual mijarei.

Um dos argumentos do ilustre doutor era estarmos no meio de uma guerra civil. Ponto final, fim do assunto: bonzinhos de um lado, mauzinhos do outro. O Rio de Janeiro é uma hecatombe descontrolada com feixes luminosos que são disparados aleatoriamente sem um destino certo, tornando cada um de nós vítimas da violência urbana, imersa e à mercê do narcotráfico.

Que o Rio de Janeiro está um caos, já sabemos, é quase um pleonasmo dizer que o Rio está violento. O Rio “é” a violência. Ele nasce violento, como a História mostra. Convém questionarmos “de que” violência estamos falando, mas não é chegada a hora deste assunto. Interessa-me, por enquanto, questionar a idéia de que vivemos uma guerra civil.

Não, meus amigos, não vivemos uma guerra civil. Por mais violenta que nossa cidade esteja. Vamos ao Aurélio. Guerra: “luta armada entre nações ou partidos; conflito; expedição militar, campanha; a arte militar, oposição”. Civil: “concernente às relações dos cidadãos entre si, reguladas por normas do direito civil; não militar; civilizado, cortês; indivíduo não militar, paisano”. Desculpem se estou às cegas, mas não consigo enxergar a questão do narcotráfico e das milícias na combinação dos conceitos acima. Talvez com uma ajuda mais profissional o nó se desfaça. Vejamos o que dizem John Keegan, editor de defesa do jornal "The Daily Telegraph" de Londres e Bartle Bull, editor internacional da revista "Prospect”:

"Existem três aspectos principais que definem uma guerra civil, cada um deles com diversos requisitos secundários. A fórmula básica é simples: ela deve ser uma "guerra", a violência deve ser "civil" e seu objetivo deve ser o exercício ou a aquisição da autoridade nacional.

A parte "civil" da definição significa que a luta deve ser conduzida dentro de um território nacional e deve ser efetuada principalmente pela população desse território, lutando entre si. Também deve envolver um grau significativo de participação popular.

Uma guerra civil também tem de ser uma guerra - o que o dicionário chama de "disputa hostil por meio de forças armadas". Essa definição exige batalhas e campanhas formais? Ou basta a luta entre facções ou regiões? Para nós, uma guerra civil exige líderes que digam pelo quê estão lutando e por quê, e um público que compreenda do que se trata - as diferenças e os objetivos.

A terceira condição principal, a autoridade, é igualmente importante. O motivo da violência deve ser o governo soberano: os combatentes devem tentar tomar o poder nacional ou mantê-lo. Vingança, lutas por direitos e crimes em massa não bastam".

Eu nunca soube que algum traficante quisesse ser presidente do país, tampouco que o objetivo do líder de uma boca-de-fumo fosse a soberania nacional. Tudo bem, a autoridade do Estado pode até estar em jogo, mas será que em âmbito nacional? Uma guerra civil pressupõe a população lutando junto, estando “com” os guerrilheiros, e não “contra” os combatentes. Existe um certo apoio populacional em uma guerra civil que se opõe diametralmente com o medo que nossa população carioca vivencia. Onde está a participação popular na “guerra civil carioca”? Ou alguém conhece alguma senhora mãe-de-família que fez cursinho no GPI ou no pH para aprender técnicas de balística aplicadas à guerra?

Mas o que eu acho mais interessante na citação acima é o fato de que uma guerra civil pressupõe a existência de líderes que digam pra que vieram ao mundo; exponham seus objetivos de modo que todos saibam por que cargas d’água eles estão se matando! Em suma, “líderes que digam pelo quê estão lutando e por quê, e um público que compreenda do que se trata - as diferenças e os objetivos”.

Eu gostaria muito que o Rio estivesse em uma guerra civil. Eu queria saber por que meu vizinho morreu semana passada, quando saiu de casa e não voltou. Gostaria muito de entender por que temo chegar em casa de madrugada, ou ainda, compreender os temores que sinto ao sair de carro à noite, correndo o risco de um assalto, um latrocínio, cometido por um desvairado qualquer. Me incomoda saber que esse desvairado não tem uma história, um porquê, um sentido. Ou será que tem?

É muito mais fácil reduzir um problema histórico de ausência do poder público a uma definição simples, dada por um conceito, tão limitado quanto qualquer outro: guerra civil. Eu acho que ficaria mais fácil se de fato eu conseguisse enxergar nesta sociedade as duas faces da mesma moeda, os grupos que estão em “guerra civil”. Mas nesta terra até a moeda é corrompida, e o lado que é dado aos salmões, satisfaz também os baiacus. Não vejo dois lados distintos lutando, mas grupos que se alimentam um do outro, ou alguém realmente acredita em brincadeira de polícia e ladrão? Este tempo já passou. Hoje os papéis se misturam. Quem deveria garantir a segurança se vende. O criminoso protege. É a cidade às avessas, que cada vez mais se corrompe sob as barbas da barbárie que é o capitalismo, onde o que vale, sempre, em primeira instância, é o dinheiro. A milícia é a tradução da corrupção do poder público, e o que mais me espanta é vê-la posar de herói nesse país de anti-heróis. Aliás, este país é uma fábrica de anti-heróis: de Cabral e seus genocidas a D. Pedro e seus escravocratas. De Vargas e seus torturadores a Fernandinhos Beira-Mar. De Tenório Cavalcanti a Zito e seus protegidos. Eu tenho nojo desse anti-heroísmo que mascara o mal pior (com toda a redundância que esta expressão traz) que nos está acontecendo.

Meu colega doutorzinho pediu uma explicação: “se não é guerra civil, é o quê?”. Eu respondo: “É a ausência por conveniência do Estado” somada ao “monstro do capitalismo que toma conta deste planeta”. O que vemos hoje é o resultado de anos e décadas de descaso do poder público. Se a favela é violenta hoje, não o foi o Estado quando privou a população dos direitos sociais, políticos e civis dos quais deveria gozar? E desde quando milícia é solução pro problema do narcotráfico? Pesquisas mostram que em cerca de 63% das comunidades onde existem hoje as milícias, não existia tráfico de drogas (entenda-se como tráfico de drogas um esquema mais ou menos articulado de negociação de narcóticos com base estabelecida em uma determinada localidade). Elas não eliminam o tráfico, mas se alimentam dele, quando não o substituem. O que é público, é público. O Estado não está à venda! A milícia é pior do que o tráfico, porque o tráfico não vai à Assembléia Legislativa, não se candidata, não ganha eleição. A milícia, sim. Ela é o Estado vendido. E se hoje pode parecer pouco pagar um policial de meia estirpe 10 ou 15 reais, para garantir a segurança da criançada, quanto não custará a sua vida daqui a 10 ou 20 anos? E quem controlará essa transação financeira fora da lei? Outrossim, deveríamos cobrar segurança de quem deveria fornecer, isto é, este mesmo policial, que é pago pra isto pelo Estado. Para isto pagamos impostos. E se ele não tem condições de fornecer, que briguemos para que ele o tenha. Mas é mais fácil pagar a propina institucional, não? O problema é que estamos criando as bases do leilão do poder público. Os 10 reais de hoje podem, a médio prazo, se transformar na metade do seu salário, ou da sua casa, ou da sua vida.

Você tem INSS? Mal, mas tem. E amanhã?
Você tem um Congresso? Corrupto, mas tem. E amanhã?
Você tem partidos políticos? Vendidos, mas tem. E amanhã?
Você tem emprego público? Viciado, mas tem. E amanhã?
Você tem salário? Miséria, mas tem. E amanhã?

Eu não tenho mais paciência para o conformismo. O que é clichê não me comporta. Ficar no disse-me-disse, no faz-de-conta, no oba-oba, é um saco! Como disse meu amigo e pastor: “fechar os olhos é um horror!”. É o “ó”. Devemos refletir sobre as idéias as quais defendemos, sem a preocupação de reproduzir as lições de advoguês aprendidas na aulinha do primeiro período da universidade. O Brasil é coisa séria. É uma comédia trágica, que faz a gente rir porque dói, porque sofre, porque mata.

E hoje, quando eu poderia estar enlutado com meus colegas pela luta contra a AIDS, tive que gastar minha uréia na Internet refletindo sobre uma guerra civil que não existe, quando o que existe de fato é uma realidade dura e cruel, da qual ninguém, em absoluto, ousou discutir no dia de hoje lá onde eu trabalho. Porque onde se costumava fazer a diferença, passou a proferir-se a parcimônia. Que saudades do Abraço contra a AIDS! Era um grande evento, que ocorria todo ano naquele lugar. Mas justo hoje, primeiro dia da semana, redondinho, segunda-feira, dia primeiro de dezembro, lá no meu trabalho, nada... somente o silêncio do cinismo, da mesmice, do fechar os olhos, interrompido apenas por quem, não sabendo urinar, defecava da boca conceitos fétidos, limitados e clichês.

3 comentários:

  1. Sr., adorei sua foto!
    Depois comento o conteúdo (mês que vem, quando terminar de ler :-P)
    Beijos

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  2. Tem é que entrar na favela metralhando todo mundo mesmo

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