Por mais que os lingüistas mais modernos queiram me explicar que o brasileiro é um povo de sotaque vocalizado, nada consegue me fazer entender o motivo de a letra “r” simplesmente desaparecer dos verbos que deveriam estar no infinitivo. Sei que nosso português brasileiro tem muita influência das línguas banto e ioruba, de origem africana, além das línguas ameríndias, faladas até hoje por muitos povos de origem indígena no nosso país. Essas línguas são línguas vocálicas, diferentes do inglês, por exemplo, onde predominam as consoantes. “Comê”, “rezá” e “amá” fazem sentido na minha cabeça se o falante está comprometido apenas com um pedido de pizza, de perdão de pecados ou, sei lá, de casamento. Eu consigo me conformar em ver o “r” desaparecer da língua falada. Mas eis que surge mais um desafio: entender por que cargas d’água resolveram abolir o infinitivo também da língua escrita! “Escrever” agora é “escreve”; “falar” agora é “fala”; “sentir” agora é “senti”. Ano após ano vejo que se tornam mais comuns frases do tipo “Quero
fala com você, pode
se? Que tal marca um dia pra gente se
encontra?”. Será que nesse bendito encontro alguém, pelo amor de Deus, encontra também o infinitivo?
Já virei noites a fio desesperado, temeroso de ver minha Língua Portuguesa se transformar numa réplica da anglo-saxã. Lá, sim – nessa língua de gringo – o verbo pode ser “to be”. Mas aqui não tem a porcaria do “to”, pombas! Aqui, ou você me
love ou não me
love. Sem “to”. No Brasil, a graça não é “to kiss”, mas “beijar”, com um “r” bem rasgadinho no final. Ou alguém beija com “to” na frente? Não teria o menor suspense: todo mundo já saberia que viria um infinitivo no caminho. Aqui a gente sabe que beijo que é beijo acontece devagarzinho, devagarzinho, letra por letra, com direito a sentir lá na garganta o vibrar do “r” no final... b-e-i-j-a-a-a-a-a-a-a-a-r-r-r-r-r-r-r! Assim mesmo, gostoso e sem perder o ar! Particularmente eu achava o infinitivo um produto quase sexual. Era um mistério guardado a sete chaves e aberto no momento mais oportuno. O namorado, rapaz esperto, chega empolgado e propõe: “Amor, que tal a gente pegarrrr um cinema e depois esticarrrrr a noite em um lugar onde possamos esticarrrrr também as nossas... conversas?”. E então, de esticada em esticada, o infinitivo passaria de geração a geração, não fosse o fato de terem decidido abolir o meu recurso sexual favorito! As fugidinhas nunca mais tiveram tanta graça depois do sumiço do infinitivo...
Eu tenho esperança de que alguém um dia encontre novamente o infinitivo ou, pelo menos, descubra uma maneira mais interessante de comemorar um aniversário de namoro. As cantadas estão cada vez mais pobres, os xavecos andam para as cucuias, e as pessoas inventam maneiras cada vez mais esdrúxulas de expressarem desejos, sentidos, vontades. Enquanto uns apostam em um estilo tão inovador que chega a ser esquisito, violento ou absurdo, outros se apegam a um discurso mais que ultrapassado, piegas, clichê.
Na escola, como professor, vivo esse dilema. Está cada vez mais difícil ver alguém ser original para elaborar um discurso falado e, dez vezes mais, um discurso escrito. As tentativas vão dos tradicionais “a gente fomos” às construções mais, digamos, “autênticas”. E quando eu penso que se esgotaram as surpresas vindas dos meus alunos, eles dão a volta por cima e inventam uma maneira muito mais complicada de se expressar! Esses dias resolvi fazer uma sugestão a um ex-aluno que insistia em escrever “kue” em vez de, simplesmente, “que”. Ora, que mal faria trocar o diabo do “k” pela letra “q” que, ortograficamente, é a letra correta e mais apropriada à conjunção “que”? Expliquei que foneticamente o “k” não fazia sentido, porque a pronúncia do “u”, em “que”, não existe. Sugeri que, se o amor pelo “k” fosse tão grande que não pudesse abandoná-lo, que ele escrevesse “ke”. Pelo menos nas conversas virtuais ele seria inteligível. O rapaz, por acaso, se dispôs a rever seus caminhos e passou a escrever “que” com “q”. Mas outros continuam a me surpreender com suas peripécias escritas.
Comecei a observar essa resistência à escrita há alguns anos quando os primeiros sinais desse distúrbio apareceram: os pupilos vibravam com provas de múltipla escolha e repudiavam as dissertativas. E, por mais que eu insistisse, bimestre após bimestre, que as questões dissertativas eram mais fáceis, eles preferiam se deliciar com a ideia de que conseguiam responder uma questão inteira marcando um “x”, mesmo que fosse na alternativa errada. Se a prova tem um texto, e se o texto tem perguntas sobre ele, as respostas obrigatoriamente – segundo a concepção da maioria dos alunos – devem começar em um ponto ou em uma vírgula, e se estender linhas e linhas até o final do período, ainda que o texto reproduzido não tenha absolutamente nada a ver com a pergunta, à exceção de uma palavra qualquer que se assemelha com o enunciado da questão.
Por muito tempo eu pensei: não sei ensinar! Meus alunos não entendem minha matéria, ela é um lixo, não serve pra nada. Sou uma droga de professor porque não consigo fazer com que a droga do conteúdo saia da droga da Academia! Até que eu descobri que o problema não estava na minha disciplina, mas nas habilidades da Língua Portuguesa desses alunos. Ou haveria um consenso de que todos os colegas professores de português nada ensinavam, ou haveria uma outra explicação para que meus alunos não soubessem que – por exemplo – as questões dissertativas “a”, “b” e “c” deveriam ser respondidas nas linhas subseqüentes, e não com um “x” mágico sobre a letra que identifica a pergunta. E a explicação existe! Meus alunos não sabem ler! Isso mesmo, eles simplesmente não sabem.
Quando eu era pequeno, meu pai me presenteou com uma maleta de livros infantis. Durante anos eu me apeguei àqueles livros coloridos. Cheguei a decorar uma das histórias, a dos Três Porquinhos, que eu contava para meus primos e amigos. Em um momento da história eu dizia assim: “E o lobo morreu morto”, porque não havia reparado no ponto que existia entre a palavra “morreu” e a palavra “morto”. Sim, “e o lobo morreu. Morto, não poderia mais ameaçar os porquinhos”. No meio do caminho tinha um ponto; tinha um ponto no meio do caminho. Mas eu passava batido por ele. Todos riam da maneira como a história era contada, e sempre era muito divertido aprender com os livros. Um dia acabei entendendo que o lobo não morreu morto. Os livros... eles me traziam magia, criatividade, emoção. Traziam mais cores à vida. Os meus livros tinham infinitivo e traziam sentido à minha existência.
Se alguém souber onde foi parar o infinitivo, me avise. Eu tenho um palpite. Acho que ele se escondeu no mesmo lugar onde se esconderam os sonhos das crianças. A imaginação, a ludicidade e a alegria delas resumem-se a um aparelho de celular ou ao orkut. Experimentei perguntar a uma aluna completamente alheia às atividades da sala, o que ela queria ser daqui a cinco, seis anos, quando já estivesse trabalhando. E ela, sem perspectiva alguma, respondeu: “médica”. Respondeu a primeira profissão que lhe veio à cabeça. Não condeno o desejo da aluna em ser médica, mas, sinceramente, minha impressão foi que ela simplesmente desconhece qualquer outra profissão que esteja entre a medicina e o desemprego. Meus alunos não sabem ler! E isso me deixa triste. E o que me corrói não é o analfabetismo funcional em si, mas a razão dele. Não existe razão para ler! Não existe mais razão para aprender! E, ao que tudo indica, não existe razão em viver. Cada aula que passa é uma ofensa a mais. Cada dia que corre é mais um que morre. E vidas são perdidas. E sonhos são sepultados. E até que eles despertem novamente os sonhos; até que acreditem que esses sonhos podem se tornar realidade através da leitura; e enquanto a imaginação tiver de asas atadas pela inércia, pela não-ação, pelo conformismo, não haverá caminhos nem para aprenderem o conteúdo de qualquer disciplina, nem para devolverem o infinitivo à Língua Portuguesa.